Verão 75
por Licínia Quitério
Um homem-menino chegado da soleira de outro tempo abriu um sorriso nos olhos de Clarisse. Não se lembra do nome dele. Dirá que se chama Fernando. Tinha fome e tinha medo e levaram-no ao encontro de outras fomes, de outros medos. Era uma vez uma aldeia perdida, lá no fundo, passado que fosse o leito seco do ribeiro. Clarisse no declive da serra, rodeada de canções de luta e sobressalto, levando nos braços a maior esperança do mundo. Fernando espantava os medos acariciando livros de ensinar a ler, os livros com que ele, Fernando, ensinaria a ler. Pelas serras fora, os ogres ateavam fogos e tocavam sinos a rebate, anunciando a chegada do anti-Cristo. Clarisse duvida agora se aquele foi tempo de desejo ou de passagem. Os álbuns não mentem, mas confundem. O sol do meio-dia era uma afronta nas paredes enrugadas e na magreza das couves. Histórias que talvez tenham contado a Clarisse ou, quem sabe, ela as tenha inventado quando à noitinha uma mulher lhe bateu à porta para ser ouvida. Mulher-desgraça, desacertada, pecadora de amores alheios, solteira e perdida e calada. Fernando era o rei dos meninos quando lhes lia histórias e os deixava tocar as capas grossas dos livros. Havia enxadas e forquilhas e ameaças de exorcismos. Ou não. Não pode saber quando isso acabou. Se acabou. Clarisse julga lembrar-se de ter falado, no luar, na rua. As pessoas iam chegando e ficavam e sentavam-se no chão. Um lobo uivou ali perto. Ninguém se importou. Os cães estavam sossegados, lambendo o pelo e as feridas. Que terá dito Clarisse? Por certo, as palavras necessárias que não sabia e já esqueceu. Os livros de Fernando a passarem de mão em mão, a fecharem a roda dos corpos no luar de todos. Que mais terá acontecido? Por onde andará em contra-luz aquele homem-menino? Que novas fomes terá sabido? Que histórias contará sobre o luar das noites que o fizeram rei das crianças, naquele Verão de fantasmas contra o tempo? Clarisse sabe que respostas não terá.
Licínia Quitério
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